“Não quero regra nem nada
Tudo tá como o diabo gosta, tá
Já tenho este peso que me fere as costas
E não vou, eu mesmo, atar minha mão”
Belchior, Como o diabo gosta
este é um ep de escavações no escuro. é esperada alguma confusão.
por último falei de mente, corpo, sensações e consciência como se fossem assim coisas separadas, que é o mesmo que dizer que escolhi partir de um lugar conhecido, ainda que fragmentado.
agora estou pensando nas relações entre esses elementos e o lado de fora, o mundo e os outros, as dinâmicas interno-externo a que chamamos realidade.
estou pensando na permeabilidade que temos às experiências, nas interpretações que fazemos delas e em como tudo isso vai parar dentro da gente. penso em como é difícil precisar de palavras às vezes.
escrevo e imagino correndo paralelo ao eu cotidiano o assombroso rio do inconsciente, imagino a noite que é o corpo — conhece muito, comunica cifrado, guarda para si um tanto e acha que disfarça quando faço e desfaço coisas sem entender bem os motivos.
imagino o abstrato e o concreto conversando entre si, suas espirais infinitamente trançadas feito yin e yang.
aliás, que coisa curiosa é examinar a vida desse jeito, olhar o tempo como experimento. por último falei do corpo, e o corpo tem sido o centro dos meus dias desde então. adianto que é uma prática que vem com algum risco.
apesar dos riscos, acho que falei desses elementos de algum modo.
o que não falei é que em repouso, aos poucos, há coisas que afundam e coisas que vêm à tona, como sujeira na água parada. solidões, medos e raivas, perdas que moram na memória, faltas, apetites e desatinos. as sombras internas que não podem caminhar à luz do sol e restam ali mal enterradas.
estou pensando em quanto o funcionamento humano depende de volumosas ilusões, capas sobre esses traços, para que a gente saia na rua e coma e durma, abrace e diga oi, bom dia, comigo está tudo bem.
caminhamos na fronteira tentando equilibrar o cotidiano com tudo de inquieto que acontece no escuro, onde imaginamos estar tão bem guardado e escondido.
não seria mais um dos nossos acordos silenciosos que eu não fique sabendo hoje o que você chorou ontem à noite?
mas por baixo desses diálogos pretensamente polidos, ponderados, lógicos há sempre outros diálogos. no fundo do prato, diante da mesa, metidos no miolo de mim e de você, eles sussurram angústias e desejos inadmissíveis, cuja única chance de se verem expressos é uma máscara limpíssima com a qual se cobrem e penetram no cotidiano, disfarçadamente, à luz do dia e diante dos olhos e ouvidos de todos.
todas as coisas que dizemos sem entender, as tantas que conhecemos sem dizer e as que revelamos sem notar.
as coisas para as quais não temos linguagem e permanecerão, portanto, inexplicáveis em alguma medida.
a conversa com o que gostamos de esquecer borbulha lenta no perigo da quietude e, naturalmente, é algo muito traiçoeiro de tentar trazer à tona assim.
uma vez sonhei nesse caminho: eu mergulhava numa piscina verde escura coberta de limo, lodo, algas e lixo e nadava até o fundo fazendo muito esforço, porque precisava puxar a corrente que destapava um ralo.
queria dizer que o que mais me espantava na piscina do sonho, metáfora tão óbvia, o que mais me espantava não eram a sujeira nem a turvação, mas o fato de que eu nunca alcançava a tampa que resolveria o sufoco. ali tudo era angústia. na mesma noite também sonhei que me afogava.
desses sonhos ficou a sensação de mensagem, como se estivessem ligados por mais que a noite e a água, algo como um sentimento de tristeza ou vergonha. mais ainda do que isso, ligados pela forte sensação de guardarem coisas não ditas, mergulhadas e mudas, de não me permitirem perspicácia nenhuma.
depois de acordar fiquei pensando em uma coisa em que penso muito, mas que agora não quero lembrar.
imagina um segredo, saber naufragado e desconhecido, guardado como fica guardado o mofo que surge de súbito nas faces do mundo, ali quando fica óbvio que já vivia por dentro e oculto, convenientemente afastado da luz. é assim que funciona isso que estou tentando contar.
quero dizer que abaixo das superfícies há muita vida.
se te parece que alguém tem o mundo interno livre de fissuras e que esta seria uma sorte, que nada, é só falta de imaginação.
há muitos movimentos perceptíveis que moldam as experiências, mas também a moldam paixões, maldades, delírios, ressentimentos, pavores e muitas mais coisas quase invisíveis. é frágil a fachada que chamamos de sanidade.
várias vezes falei de como está tudo fragmentado, sempre esteve, e a gente olhando para o outro lado. agora vemos o espalhamento de coisas feito os vírus e a desinformação, está escancarada a cortina para uma desagregação que é nossa para contemplar.
por isso estou pensando na contraparte íntima desse mal-estar, na rejeição do que é estranho, na desconfiança com o que é ambíguo, no medo de estranhar a si mesmo nessa fragmentação geral.
é que sempre chega o momento em que as costuras estouram e um limite até então intransponível é rompido, quando à frente é desconhecido o terreno e avançamos na escuridão.
pode ser revoltante notar que um instante assim impensável é precedido de um monte de instantes banais, vários daqueles disfarçados diálogos. acontece com as expectativas quebradas, com os pratos arremessados em paredes e com todos os descaminhos das coisas.
um solavanco nos arranca do conforto e dá vontade de acreditar que só existem a verdade e a mentira, a dor e a alegria, o bem e o mal, e que no final um ganha e o outro perde. fica atraente transformar a existência agora irreconhecível numa paisagem inerte.
dentro surgem a ansiedade por achatar as discrepâncias e a recusa da discordância, vê-se binários em toda parte, que são outra falta de imaginação. às vezes dá insônia e muito frio, às vezes nada.
com a mandíbula bem fechada, escolhe-se a dureza e o controle, com ela mastiga-se o que incomoda, a mandíbula que é a lei do mais forte, a tirania da perfeição, o disfarce fingido e a obediência irrefletida.
recorre-se a opressão, assimilação e alienação para achatar, engolir e calar o que parece inseguro, e o cinismo volta para dizer que não desejemos nada nem esperemos nada, assim nada poderá nos decepcionar.
continuo pensando, óbvio, mas não me atrai a ideia que promete proteção após o sufocamento dos nossos modos mais íntimos, algo como querer fincar cercas no meio de um lamaçal.
deve haver vantagens em puxar as tampas e ver as coisas como são, ao menos tentar sair desse estado clandestino.
por que as coisas não são boas? por que eu não sou melhor?
como saber se estamos vivendo bem, fazendo o certo, mirando no ideal? como alguém poderia saber?
que condições fazem a desonestidade descarada virar cotidiana? e a indiferença?
muitas pessoas se emocionam ao ver a vontade de destruição desinibida e a violência autorizada, por quê?
por que a crueldade...?
(evil, why have you engulfed so many hearts... evil
evil, why have you destroyed so many minds...
leaving room for darkness, where lost dreams can hide)
como ter coragem para suspender a anestesia e olhar ao redor? por que querer fazer isso?
perguntas assim expõem o risco do silêncio e nos colocam logo entre as coisas humanas, suas inconsistências, as forças incombináveis que criam e destroem tudo em nós. são a desistência da distância imaginada.
pergunto e reconheço a sombra que faz cutucar onças, balançar o barco e trancar as portas, aquela que está aqui e aí também. enxergá-la completamente é algo impossível de se fazer, e também é muito comum não querer nem tentar.
mas se a qualquer sinal de deslize recorro a mecanismos de controle, vivo uma vida mesquinha, com muito mais chances de me machucar e de machucar outras pessoas. se fico preocupada demais em errar, não aprendo nada. se a todo o tempo me sinto vigiada, não posso conhecer o que sinto.
por isso estou pensando em como ficar mais próxima do que parece ameaça.
pensando em formas de alcançar a complexidade e em como a realidade humana não combina com pureza, que nada vivo combina com pureza. acho que é possível acolher um pouco mais de incerteza, mergulhar atrás das coisas que não são lineares nem trazem respostas imediatas.
pacientemente, assim, talvez aprenda que por baixo da rigidez tem o nojo, por baixo do nojo tem a vergonha e por baixo da vergonha tem a febre da vontade.
por baixo da culpa está a raiva e por baixo da raiva está o medo, por baixo do medo muitas vezes tem tristeza, que a gente nem sempre sabe nomear e vem mesmo sem chamar.
e porque nem tudo é brutalidade, talvez aí descubra que a força estranha no fundo de cada vontade encoberta é também o que me movimenta.
se a mente vê o que reconhece e em seus padrões encontra ressonância com o que está do lado de fora, quanto mais me disponho a olhar o mistério de dentro, mais coisas a vida me mostra.
posso lembrar num susto:
além do meu mundo tem ainda outros mundos.
e virar assim do avesso não deixa de ser um jeito criativo de se mexer.
quero imaginar uma generosidade complacente e menos ingênua, que reconheça que nossas sombras são regra e não exceção. não desviar o olhar nem me deixar sufocar pelo que acaba surgindo.
para então aceitar a aflitiva suspeita de que ninguém sabe muito bem o que está fazendo, os consensos são inventados e nem todas as regras, seguranças ou mandingas vão nos dar o controle desejado.
examinar intenções e justificativas na infinita tentativa de entender. reconhecer quando o egoísmo e o desejo, não sem discernimento, são testemunhas de que estamos vivos.
não esquecer como, muitas vezes, a destruição, a sujeira e os abusos, toda essa feia camada vai escondida sob as saias do que chamamos melhoria. admitir que a ignorância pode ser mais perigosa que o mal declarado e que consegue ser muito mais sorrateira.
porque sou humana e contenho em potencial todos os atos humanos, malditos e gentis, quero lembrar das coisas difíceis, saber que o terror é possível e que o caos dorme leve logo abaixo da superfície.
porque sou humana sei enxergar quantas coisas da natureza lembram a crueza das infâncias, tão intensa que termina esquecida.
porque sou humana e sou daqui, sei que horror é todo dia e que pensar em abstratos muitas vezes é um luxo.
e consigo colocar a cabeça na boca do leão só para descobrir que o leão também sou eu.
portanto a mim cabe lembrar que nem sempre ajo de acordo com quem aspiro ser. entre isto que consigo e aquilo em que miro há uma brecha onde surgem a imperfeição e a dor que ela desperta.
e se for um ciclo vicioso? e se os erros causarem a vergonha, que causaria a rigidez que levaria a mais erros, piorando o mal-estar com o medo da rejeição e assim vai?
e se por baixo do ódio estiver mesmo um sofrimento?
não poderia ignorar a sombra que é preservação, ansiedade por mascarar as dissonâncias que machucam, solução enviesada para problemas tão reais.
uma proteção tosca, torta, caco de vidro no muro, e ainda assim...
mas não tenho as respostas agora, antes teremos que nos encontrar com tudo mal resolvido.
aí essa imperfeição pode vir a calhar como um alento, já que não teremos que sustentar nenhum absoluto.
porque é mais fácil conversar com quem não é um monstro e é mais fácil conversar com quem não é um santo, quero saber que o pecado faz parte do acordo, confiar que é isso mesmo ser humano.
para aprender que a minha forma de ver e interpretar a realidade é uma semântica particular, cheia de falhas, e que relações frutíferas acontecem num espaço de semânticas compartilhadas, nunca coincidentes.
somos pessoas imperfeitas vivendo em condições imperfeitas. se formas de pensar, amar, viver são incompatíveis, o caminho para prosseguir é renegociar, tentar uma distorção.
acho que a graça não é descobrir quem é pior, mas desvendar o que está acontecendo, afinal, e como a gente poderia complicar menos, aproveitar mais e conviver melhor.
contar a você minha aspiração, que é uma espécie de promessa, e contar com o arrependimento e o perdão, que existem para quando não consigo cumpri-la, porque é claro que não conseguirei.
arriscar revelar o ridículo, ir na beira das relações, precipitar-me. tatear os contornos do que sofreu erosão, mergulhar no que está escondido e buscar nos erros a possibilidade de conexão.
com quem estou sendo honesta? com quem estou me divertindo? quem estou machucando?
em condições adversas, quando me sinto provocada ou ferida, que integridade consigo manter?
não descobriria calada, já que é depois de romper os limites no grito, no desprezo, no choro ou no impulso que vejo do que sou capaz. quero conseguir não enjaular meu coração nesses momentos.
essas reações, suspeito, tecem o fio que leva até as dores persistentes, é ele que marca os atalhos internos que preciso conhecer.
só que o exercício de abrir espaços por dentro, de criar capacidade para acomodar o caos do próprio inconsciente, da realidade e do outro não pode ser um caminho senão de ruptura, nada suave.
quero lembrar que é aceitável ser muito gentil no processo, gentilmente ter atenção e gentilmente permanecer num estranhamento de mim. os aprendizados nesse lugar chegam de viés e convidam a um espaço além da cansada vigilância de certo e errado.
para alcançá-los, preciso recusar a fantasia de que é possível aprender sem comprometer, sacrificar ou quebrar nada.
não ocorrerá mudança de modo limpo e ordenado, sem incômodos ela seria apenas mais um modo de obedecer.
porque olhar as sombras pode ser um perigo imenso, assim como a quietude e as águas, é necessário ensaiar outra dança, que leve para longe o desejo de contenção.
o que quero, no silêncio e na solidão, no mal-estar da culpa, dentro do arrependimento, na raiva, no prazer, na surpresa é poder não me fechar.
ficar atenta para descobrir o que sinto e atenta para entender o que sinto.
desfazer as contrações que foram modos de sobrevivência.
perceber que engessamentos foram necessários para aprender.
abandonar o domínio, abandonar a domesticação, abraçar certa decomposição.
abandonar a desconfiança do corpo, a desconfiança do mundo e parar de me abandonar.
deixar que o corpo e as emoções aprendam esses movimentos submersos mesmo que a mente não tenha entendido por quê, repetir a permissão como um ritual até que se torne modo de ser.
testar que ideias, gentilezas e gestos, menos nocivos, poderiam guiar os caminhos imprecisos do que sinto.
e soltar formas cristalizadas para aprender minha própria linguagem secreta.
quando for me recriminar por estender alguma generosidade a quem parece não merecer, lembrar que esta pode ser a única forma de fazer o mesmo por mim. talvez encontrar maneiras de fazê-lo seja o desafio central desta prática.
observar, perguntar, querer compreender, repousar e então tentar amolecer. são pequenos os blocos que empilho na esperança de chegar a algum lugar.
por agora, suspeito que um dos pilares da integridade é a dúvida e volto a este princípio simplório que orienta somente: primum non nocere. enquanto perdidos entre o labirinto e o fio, tentar não fazer mal.
tenho a impressão de que são frequentes as chances de resistir a um impulso destrutivo, acho que é possível tentar várias vezes por dia.
tentar não fazer mal mesmo que pareça inútil.
mesmo que dê muita vontade de fazer.
mesmo que seja inevitável falhar.
confiar na tentativa parece a parte importante. talvez vire um valioso treinamento, talvez mais uma útil ilusão, em especial útil num mundo que promete nos fazer exilados em concreto e abstrato.
de algum modo pode ser a promessa de que, apesar de tão ignorantes, alguns de nós queremos ficar perto, machucar menos, tentar de novo.
e não achamos tão má a ideia de continuar por aqui, nos divertindo e vacilando mais um pouco.
ep5
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