"A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim."
Cecília Meireles, O fim do mundo
se eu ficar bem quieta observando e sentindo, que as sensações são instrumentos de aferição, vou te dizer que noto tudo muito estranho.
eu recém disse que o mundo muda, tudo muda, o tempo passa, e sei que as coisas nascem e morrem, assim como nascemos e morreremos nós.
mas não é só isso, estamos tão desencontrados.
a descrição precisa é de que está assim uma vibe muito esquisita.
tem essa óbvia camada de apreensão sobre os dias, vigilância e inquietude.
tudo me parece excessivamente rápido, exagerado, cruel, eufórico, grotesco, polido, falso, extravagante, descartável.
tanto surge fragmentado. caótico demais, repetido demais. o mundo parece acontecer em recortes, sempre pontilhados pelos horrores recorrentes.
e não é só na internet. e, pior ainda, isso já nem é novidade.
por enquanto, ainda lembro que, uns mais e outros menos, juntos experimentamos a materialidade do horror nesses últimos anos. o abandono, o medo palpável, as perdas inúmeras.
olhamos tão de perto para a morte e para indignidade.
acho que essa dor continua presente, mesmo que disfarçada. o pior aconteceu e continua acontecendo, mas nós parecemos confusos.
percebo, em algumas conversas, a fixação em quantificar e otimizar a vida, que é como a vontade de colocar rédeas sobre um mundo indócil. penso em quando eu mesma me apego a essa fantasia.
percebo outros, de algum modo, confortáveis surfando no caos, e talvez seja inveja o que sinto por não ter essa aptidão.
noto reducionismo, desinteresse, certezas fabricadas. distorções nascidas da pressa de calar as dúvidas.
"está tudo perdido" e "vai dar tudo certo" parecem dizer coisas opostas, mas têm efeito parecido. não significam nada.
não espanta que, em meio à vertigem, seja difícil exercitar clareza.
penso que ficamos até mais cientes das adversidades, especialmente as de nossa própria criação, e dizemos que estamos exaustos, só que fazemos muito pouco de diferente.
se tudo parece estranho, se tudo parece perigoso e se vai ficar tudo muito novo, por que as falas e ações continuam as mesmas?
enquanto as crises se aprofundam, não quero nos ouvir dizendo "o que está acontecendo?" com esse som de despreparo.
de quantos outros reveses vamos precisar para aprender, de quantos eu precisarei, fico pensando.
já estamos bem cansados e tristes.
para dizer a verdade, tenho dificuldade de articular essas questões. tento desviar de hipocrisias, tento conciliar a urgência com o que parece factível.
oscilo entre a vontade de descrever a bagunça em detalhes, o que nem parece possível, e a de prosseguir de modos ainda mais oblíquos, correndo o risco de colecionar palavras vazias.
receio sobretudo adicionar ao ruído.
com esse cenário estranho e impreciso, a confusão aflora os ânimos, a incerteza engole o tempo.
com tantas fraturas e sem um contexto comum, a realidade surge cada vez mais frágil.
daí parece compreensível ceder a excessos ou persistir em encenações, dormências, automatismos.
diante da insegurança, tendemos à paralisia, quando não aos absurdos.
e estas podem até ser respostas compreensíveis, mas não são apropriadas. não parecem benignas e provavelmente serão insuficientes.
estou pensando em um jeito de pausar. abrir espaços despertos no dia, ainda que por instantes.
convidar a lentidão, a paciência, a ponderação.
colocar mais intenção nos pensamentos, na comunicação e nas ações.
porque nós precisamos da nossa ajuda. precisamos estar seguros, conscientes, dispostos. precisamos cuidar uns dos outros, compartilhar o desconforto. podemos encontrar entusiasmo apesar de tudo.
como fazer para nos lembrar disso? não pergunto só por perguntar.
gostaria de dizer mais vezes "o que está acontecendo?", só que com um som de curiosidade.
e acho que seria interessante tentar não complicar a resposta logo de saída, não lançar uma cruzada individual para inventar a roda.
principalmente, desconfiar das explicações que abarcam tudo.
penso que esses momentos de pausa serviriam para exercitar quase o oposto: uma curiosidade descomplicada, sem conclusões.
para considerar a possibilidade de que já não estamos naquele mundo familiar, de paisagens compartilhadas.
para voltarmos o olhar para as fantasias precárias em que estamos nos apoiando, admitir o quanto desconhecemos, o quanto estamos arriscando.
tentar desconfiar de nossas percepções, olhar um momento para o que incomoda.
para lembrar que somos capazes de ser generosos.
sempre haverá incerteza. a dor persistirá ainda. é parte deste percurso aprender a conviver com os seus desafios, com a sua imperfeição. mas isso não é tudo.
o mundo... o mundo nunca é uma coisa só. ele existe em camadas.
tem muitos mundos além do mundo que eu vejo, filtrados pelo que já espero e conheço, escondidos na sombra que a minha visão não alcança.
o mundo não é uma coisa estática, é uma troca.
um monstro lúdico, uma pergunta sólida feita de infinitos modos. um emaranhado nada óbvio, concreto e simbólico, mutável, profundamente complexo.
vale a pena dar um passo para trás e olhar de novo.
habitar a fronteira com esse mundo é estar em constante conciliação, aprendendo sobre si, sobre os outros, sobre como lidar com a realidade.
habitar a fronteira com o mundo é estar em uma conversa, num espaço de criação, e fico presa se me paraliso por temer os inevitáveis defeitos dos meus próximos passos.
não há manual que ensine o que fazer a seguir.
não sabemos o que vai acontecer exatamente como nunca soubemos.
com cada ação, ainda que falha e insuficiente, tornamos mais próxima uma versão do mundo que só surge em retrospecto.
e as consequências dos nossos movimentos insistem em ser mais surpreendentes do que conseguimos antecipar.
com cada ação, ainda que falha e insuficiente, posso tentar criar no mundo o que desejo encontrar lá.
o que levo para essa conversa?
o que guia as minhas ações?
como caminhar neste estranho terreno?
tudo é vivo, misterioso e se mexe, qualquer resposta sincera pode inaugurar um universo.
gostaria de me movimentar não aconselhada por ilusões ou motivada pelo desespero, mas atenta aos meus deslizes.
com estes registros, fotografias do pensamento, é como se olhasse não para imagem que capturo, e sim para a lente e suas distorções.
quero conhecer os mecanismos e artifícios que uso para olhar as coisas, os padrões e automatismos que uso para responder ao que vejo.
ser honesta em minhas contradições e teimosias, negociar também comigo mesma.
ter em vista circunstâncias e contextos. perguntar, ouvir. tentar bem pensar e bem agir.
perseguir a ambição essencial que tenho, que é a de cuidar melhor da gente.
imagino se cada passo me aproximasse de um mundo que agora parece insensato. mais calmo, mais cuidadoso, quem sabe até mais contente.
fico pensando no que preciso aprender para fazer esse movimento, que seria o melhor testemunho das minhas intenções.
e admito o quanto, tantas vezes, parece mais atraente não pensar em nada, nada, nada disso.
se a cada minuto luto para enxergar através da névoa, entender o que vejo e decidir o próximo passo, o cansaço se torna inescapável. talvez por isso a paralisia, talvez por isso os absurdos.
chego, portanto, numa incongruência: também desejo ter à mão um caminho claro para agir de modo frutífero.
quero que tudo isso seja mais simples, e talvez este seja um desaforo, mas não deixa de ser verdade.
desejo ser para mim uma guia tolerante que leve em conta minhas falhas e a preguiça, os dias ruins e esse cotidiano assombrado.
quero partir da simplicidade para imaginar formas de seguir, umas que incluam a minha ignorância e muito mais.
gostaria inclusive de me divertir enquanto tento, numa trilha sem engessamentos.
e suspeito que é o que estou querendo construir.
penso que é uma tentativa tão descabida que tem tudo para não dar em nada, mas vai saber no que vai dar. justamente por isso é que ela fica interessante.
para um caminho assim, arrisco imaginar algumas direções:
exercitar curiosidade e discernimento, que é bem aqui onde estamos.
amar atentamente. equilibrar rigidez e flexibilidade. ter paciência com o que é ineficiente. acolher a relutância. saber o tempo e a matéria com seus limites inegociáveis. reconhecer a impotência sem me abater, conviver com o desconforto. buscar o contentamento.
reorientar a relação com a necessidade, com o cotidiano e suas coisas concretas.
encontrar pontos de ancoragem – no corpo, nas sensações, nas relações.
e então alimentar o hábito de imaginar.
agora, tenho pouco mais do que palavras, mas não acho um impedimento.
terei de dizê-las outras vezes e de diferentes formas.
quero compreender melhor o que significam, pretendo vê-las traduzidas em gestos na realidade.
acredito que podem ser uma impossível ponte, um tipo de começo. desajeitado, incompleto e imperfeito, como era de se esperar.
ep2
este vídeo é, na verdade, uma mensagem de áudio legendada. se quiser ouvir, basta clicar para abrir no navegador.
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