“Para aqueles que pensam, nada é sagrado.”
Wisława Szymborska, Opinião sobre a pornografia
de novo, um alongamento.
este estou escrevendo com o espírito de quem enrola na cama antes de levantar. não ter pressa é uma delícia.
uma respiração profunda e profunda, como eu disse, é porque o movimento vai até lá embaixo, expande o abdome e expira.
sei que alongar é uma delícia, massagem é uma delícia, há uns anos aprendi que até respirar pode ser uma delícia. e talvez seja mesmo mais fácil falar de amor e de mistério no conforto, com saúde, de barriga cheia.
tanto é que poderia ter começado os eps por aqui, mas não comecei. vamos adiante.
estive pensando no corpo feito de órgãos, tecidos, células, proteínas, espasmos elétricos e moléculas flutuando em pequeníssimos espaços, na escala das coisas e dos seres humanos.
lembro disso colocado objetivamente, informações na página, e percebo que agora essas coisas são quase um susto, como lembrar de fossas marítimas, radiações invisíveis ou de um grande acaso.
penso no planeta terra como uma pedra rodopiando consigo no vácuo, molécula no hiato da sinapse, imagino a atmosfera o oceano respirável em que ficamos submersos e sei que a realidade pode ser coisa de pegar com a mão.
às vezes desconfio das coisas sólidas, às vezes desconfio das palavras, fico com a corda esticada entre a mente e o corpo.
não somos abstratos nem somos só matéria a ser manipulada, otimizada, moldada conforme exijam as narrativas de progresso.
corpo não é máquina, cérebro não é computador, o relógio com suas precisas horas só conhece o tempo mensurável.
aliás, precisão é um conceito humano, assim como perfeição, eficácia, a utilidade de uma refeição pronta em minutos e até o próprio minuto.
penso num relógio de sol e em suas horas imperfeitas como são as sombras, o corpo terrestre, imperfeito como é também o meu corpo.
imagino o tédio uma certa desorientação no tempo, tropeço na superfície de acontecimentos sobre a qual passamos em rasante. um mergulho no tempo talvez, que hoje parece tão raro.
nas horas que passamos num espaço virtual de escalas incompreensíveis, estranho lapso de desmaterialização, experimentamos outro tipo de desorientação. perdemos tempo, sim, mas também corpo e espaço.
dessensibilizados pela brutalidade ou docilizados pelas conveniências, sujamos, estragamos, negligenciamos, descartamos e destruímos em rotinas automáticas, alheios.
com o corpo nesse aperto, curvado sobre retângulos de plástico e metais preciosos, é perdida a dimensão de um tanto de coisas.
lembro de quando aprendi em um poema a desligar a internet para fazer sumirem os anúncios de um jogo.
é ou não é coisa de se maravilhar? a poesia continua salvando de incontáveis modos.
mas quase nenhuma outra coisa parece respeitar nossos limites de seres vivos finitos e cansados.
em parte é essa desumanização que favorece a exploração, as fugas e a solidão. é inevitável me perguntar se também ela facilita surgirem os fanatismos e as ignorâncias, e o que afinal facilitaria nascerem no corpo a grosseria, o ódio, a crueldade.
penso agora no cansaço do fim de um ano, desses últimos anos, e na promessa de recomeço.
onde em nós moram o terror de que ficamos íntimos e a tensão de ver tanta estupidez celebrada?
onde será que vai parar a fragilidade de ver alguém amado num leito de hospital, num delírio que leva para longe, sua imagem irreconhecível na memória?
aonde vai a dor de todas as perdas?
tento lembrar que fica tudo no corpo, no corpo and the body breaks.
o que pode ser experimentado é experimentado no corpo — prazer, relaxamento, delícia, desconforto, desconhecimento, dor, zona de conflito.
o corpo e seu tempo insubmisso, seus segredos codificados, suas piadas internas contadas em dialetos particulares, sua sabedoria inacessível para os caminhos da mente.
é o corpo que ensina a impotência, a riqueza do banal e do ridículo, a necessidade de limites e de contentar-se com o suficiente, que pode ser um mapa.
gostaria de pensar em tudo isso, mas acho que não hoje.
primeiro é importante sentir.
nas últimas semanas, estive lembrando que onde cresci a noite era um breu vivo, tinha uma quantidade impressionante de estrelas no céu e cheiro de água de alfazema, o medo era como sentir frio e um burrico zurrava sempre nos mesmos horários.
num olhar assustado, debaixo da língua, nos espaços entre os dedos fico buscando provas de que estive lá, como uma antiga saudade do vazio e do silêncio.
eu já peguei passarinho na mão, assei suspiros, mergulhei no mar de amaralina, salvador, bahia ainda bebê ou foi o que me contaram. já quebrei dentes, tive dores intensas, passei por exames invasivos. eu nunca estive grávida, usei alucinógenos, quebrei o braço ou corri uma maratona. fico pensando naquilo que meu corpo conhece e no que desconhece.
respiro fundo agora mesmo e percebo os músculos tensos como uma carapaça. imagino como seria ficar muito confortável no corpo, completamente em casa.
saber que aqui estou no alto de uma serra e para o lado de lá nasce o sol, embora eu não veja isso acontecer.
falar e me ouvir transformando as palavras em sons graves e agudos, fazendo com que toquem o mundo.
atentamente cozinhar, comer, beber, limpar, beijar, conversar, sorrir, parar.
deitar e lembrar que savasana é como dissolver, folha se decompondo na terra úmida.
cair no sono.
mas, mesmo no lugar tão poupado de incômodos de onde olho, a mente impera, o descanso escapa, tem um jeito de bicho mítico, e a pressa se espreme nos instantes de pausa.
não é à toa esse sufocamento, anseio de dominar a porção animal, porque o corpo reza e trabalha, mas também goza, dói, agride, suja, deforma, adoece, envelhece e morre, todo o ruído de fundo que às vezes vem como uma pancada.
até das atividades mais capitais para se manter um ser vivo, nutrição, limpeza, descanso, cuidado, parece tentador se afastar, ainda que guardem valiosas chaves.
fico imaginando esse estado de frenesi e o marasmo coexistindo.
nossa dimensão concreta, que penetra a realidade como numa superfície líquida e reverbera inesperadas consequências, essa inescapável dimensão esquecida, maltratada, exausta.
e a mente que já não dá conta de estar tão ocupada, atropelada por estressores vários, confinada num corpo sentado.
uma hora a corda se parte, e é certo que precisamos repensar tantas coisas, por isso agora estou desejando descanso.
um descanso que se infiltre na rotina, sem ser alocado só no fim de semana, nos fins dos dias, no fim do ano. descanso no movimento e na pausa, costurado nas atividades, no tempo e no ritmo repetido da respiração.
imagino algo constante, recorrente, ritual.
um descanso mágico como é estar dentro de um momento de atenção que se estende infinito, posto o minuto em debate.
descansar desse modo é abrir espaço para que se crie o ócio e a reparação, para recarregar a atenção na natureza e deixar os sentidos passearem.
não seria recusar o que soa desafiador e urgente, mas titular a atenção de forma sustentável, proteger o corpo para encontrar a vida na melhor das possibilidades.
querendo alcançar algo assim, invento a mente como um pássaro que vai ao mundo e depois retorna para pousar num canto conhecido, o corpo, ponto de partida e de chegada nesse arco.
porque na mente há muitas vozes e muitos tempos, mas o corpo sabe ser só um, conecta, centraliza, torna denso.
em repouso o corpo opera processos em camadas íntimas, reacende o desejo, reencontra o entusiasmo, regenera a saúde. silencioso chega a suas próprias soluções.
sentir o corpo, atenção!, é adentrar mata fechada e não pode ser apressado.
pousar pede tempo para perceber sensações, inclusive as amargas, e observar como elas põem em marcha pensamentos, interpretações, ações.
uma atenção especial para se perceber percebendo.
exercício misterioso que, mais cedo ou mais tarde, desemboca, espero, em entender melhor as experiências, nossas e dos outros, e que permite assim descobrir interpretações mais generosas, ações mais cuidadosas, mais compreensão.
quero que a prática de pousar no corpo se pareça com retornar a terra firme e estável para testemunhar o furacão de informações e opiniões sem perder o chão, um refúgio onde escapar a essa volatilidade.
pousar no corpo para aprender a conter a pluralidade do que se pode sentir, ficar amiga do que é arredio e não se deixa manejar, para saber experimentar aflição e êxtase sem quebrar em cacos.
o lugar em que morei por último ficava bem perto de onde me puseram no mar tantos anos atrás. apesar de não ter voltado naquela praia, porque o oceano estava logo ali os dias tinham uma qualidade muito úmida e salgada que parecia deixar tudo tão lento, tão rítmico.
era como se o tempo servisse a observar, sentir os cabelos molhados nas costas, ver o céu ficar violeta. era mais fácil parar.
aqui não funciona desse jeito, preciso inventar tudo de novo.
quero lembrar para quando estiver triste ou sem vontade que é bom ficar olhando pela janela por um tempo, ver a luz passando, pessoas fazendo coisas de pessoas e pássaros fazendo coisas de pássaros.
deixar a atenção vagar até encontrar uma coisa boa de ver e aí olhar até saciar. perceber como as coisas do mundo são densas e ficam, ficam, ficam diante de mim sem se desfazer, sem sumir.
quero descobrir coisas irresistíveis assim onde mirar o corpo, mariposa seguindo a luz, e penso que pode também ser algo tangível, um pequeno movimento que acorde os sentidos.
acender eu mesma uma vela ou riscar um fósforo, olhar o fogo, tomar banhos, pisar firme no chão, respirar fundo.
inventar pequenas preces pela atenção nas sensações, para saber ficar forte, saudável, contente.
fórmulas para fazer a mente assentar, acalmar ansiedades e saber repousar.
e aí, quando chegar o tempo, poder ir ao mundo pronta para provar das ideias, deixar que o corpo seja cavalo das informações, da linguagem, da mente que voa sabendo que tem para onde voltar.
pausa e ação, parar e seguir, mergulhar e emergir.
mas é claro que tudo isso não pode ser feito agora e não pode ser feito aqui, já que o arco não se cumpre pelas palavras.
promissor é buscar o escuro, o silêncio, o movimento, dar atenção aos sentidos e à respiração, ir na direção de dentro, a introversão.
lembrar da água, do fogo, do ar e da terra cotidianos, alongar novamente, tocar a realidade com os olhos, os ouvidos, boca, nariz, com as mãos.
confiar no alívio, esperar a festa, viver as joias do tédio e torcer pela sorte de voltar a bobagenzinhas sem importância.
não sei se mais iludo ou sou iludida por essa conversa toda, mas vou deixar a questão por enquanto.
importante mesmo é enfim fechar os olhos, colocar as mãos sobre o peito, nada de tão especial, só inspirar e expirar com calma, inspirar, expirar e dizer, não muito alto, sussurrar ou pensar: sossega, coração, o tempo passa de todo modo e nada espera da gente. vamos prestar atenção, vamos despertar aos poucos.
e só depois disso continuar.
ep4
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