desde que tentei escrever sobre o mundo ou desde o ano passado ou desde antes ainda, estou pensando em nossa confusão, nas dores de não entender o mundo.
estou pensando na dor pior que é ter essa confusão instrumentalizada por sistemas sem rosto, motivos escusos.
estou pensando que quanto mais complexo o cenário, mais o simplismo parece ficar atraente. quando contextos conhecidos se partem, é nas frestas que crescem as inseguranças e seus autoritarismos.
dizer retrocesso pode ser útil para descrever o que vemos, só que o tempo não anda para trás de verdade. o que está acontecendo é aonde a vida está indo mesmo, e essa é uma parte que muito me espanta. é inédito e senil.
na última mensagem de áudio, comparei as conduções que são feitas com a nossa atenção a algo como um truque de mágica. olhamos para um lado enquanto o que importa acontece, às escondidas, em outro.
não parece que estamos apenas sendo vigiados e mediados, acabamos também sendo moldados. nossos modos espelham cada vez mais as lógicas internas das mídias: padronização, exagero, urgência, fragmentação.
um truque de distração que pode ser engraçado quando é feito espetáculo, mas não deveria ter a menor graça quando nos custa tempo, energia, vida.
desastres e entretenimentos parecem se acumular em velocidade parecida.
e nenhuma dessas coisas pode ser ignorada por muito tempo.
gostaria de escrever e falar de modo drástico, como se tudo o que nos importa estivesse em jogo, porque é possível que esteja.
mas é claro que tudo é mais abstrato e mais complexo do que consigo expressar, até muito mais do que consigo perceber. é claro que o cotidiano se impõe sobre as questões que parecem mais longe.
penso no ser humano, em mim mesma, com uma mente imperfeita e um corpo finito tentando encarar o absurdo que é viver nesta realidade desafiadora e infinitamente indecifrável.
o tempo curto, a vida frágil, tão raros os consensos.
seria ingenuidade achar que é possível compreender perfeitamente o mundo ou que, se eu enfim o compreendesse, seria mais feliz.
lembro que o que quero é ter tempo e espaço para viver bem perto de quem amo, para cuidar que outras pessoas possam fazer o mesmo.
essas coisas simples que levamos a vida toda tentando fazer.
talvez por isso eu sempre retorne para a atenção.
onde não há atenção, não percebemos tempo nem espaço. onde não há atenção, não pode haver amor.
se o mundo será pergunta sem resposta e restará viver as incertezas, quero tentar puxar de volta o fio da atenção sequestrada.
direcioná-la para o que é possível criar, não nos deixar anestesiar completamente.
como eu disse em outra vez, ter atenção para lembrar que podemos ser generosos.
estou pensando em ser ainda mais obstinada com o que quero ver nascer, e isso pede também parar e aprender com o que está presente. olhar para o próximo.
voltarei a falar de amor antes de terminar. agora, vou contar uma coisa que ganhou minha atenção.
aqui do lado do apartamento tem algumas árvores. moro no térreo, e elas estão plantadas num canteiro alto, consigo pra vê-las pelas janelas.
de um lado, a palmeira real escondida no fundo do prédio. do outro lado, mais três árvores, e ainda tem o ipê no vizinho.
quero falar da árvore menor entre as três que ficam no canteiro.
esteve aí verde e novinha desde que chegamos enquanto, atrás dela, o ipê foi fazendo o que os ipês fazem – no início do ano, estava totalmente sem folhas, daí os galhos nus ficaram cheios de flores chamativas e, pouco depois, ele foi se tornando verde escuro, cerrado, enorme.
mais ou menos nessa época é que a árvore do canteiro surpreendeu: é uma amoreira. cobriu-se de frutas de repente, que eu não tinha visto as bolinhas verdes antes, e continuou dando amoras até umas semanas atrás.
compreendo tão pouco de árvores e me faltou tanto a atenção que mal olhei pra ela. me fez pensar no que mais estou perdendo.
semana passada, quase pegando no sono, pensei na amoreira quieta e escura na noite logo ali depois da parede do quarto. imaginei que estávamos respirando juntas.
às vezes imagino que dos meus pés saem raízes, como aprendi numa meditação, e tento sentir como é ter folhas, plantas enroladas em meu tronco, sabiás-laranjeira sobre os galhos.
fico pensando como é ser árvore, sustentar uma complexidade sem palavras, saber fazer tantas amoras que pesam nos galhos e lotam o chão.
de alguma maneira, acho que tento compreendê-la.
agora imagino fazer um exercício assim com as pessoas, fingir que sei como são.
meu esposo e seus métodos, minha avó com dores no joelho, minha amiga vendo o deserto, o rapaz que trouxe meu almoço de bicicleta. me imagino descendo veloz a avenida, o vento sujo no rosto, noto os reflexos nos carros, a pressa, o cansaço.
eu poderia ser cada um deles e mesmo outras pessoas ainda mais desconhecidas e menos compreensíveis.
de novo, coisa ingênua seria acreditar que é possível calcular todos os malabarismos de história, acaso e agência que me tornam quem sou.
o que eu pensaria do mundo se tivesse vivido o que você viveu? suas ideias teriam mais sentido? seus movimentos seriam mais compreensíveis? seria mais fácil te amar?
penso que generosidade pode ser tentar compreender.
o que faz sentido para mim pode não fazer sentido para você com seus sentimentos, sua mente, suas experiências.
assim como não posso saborear sem a minha boca, não posso pensar sem a minha mente nem sentir nada sem o meu corpo. ainda que se eduque e sofistique a compreensão, todas as coisas serão recebidas à maneira de quem recebe.
tantas vezes fiquei frustrada buscando nitidez em linguagens estrangeiras.
daí, quando falo em compreender, estou apontando um exercício impossível que se estende bem além da tentativa intelectual.
estou pensando na atenção generosa como um alongamento, um movimento de buscar e cutucar, de querer nuances quando eu bem poderia ficar quieta no meu canto ou não poderia, não sei.
é ter sobra, tempo e espaço para buscar com outro ser a intimidade não da convivência, mas de um tipo mais radical, interno.
ofertar uma atenção tão dedicada que o torna real e me permite ali sair de mim ou, quem sabe, ficar muito presente, muito em mim.
respirar e lembrar que o ar que enche meu peito está também dentro do outro, suas incongruências são tão possíveis quanto as minhas.
querer chegar tão, tão perto que quase posso intuir seus segredos.
o que pensa uma pessoa logo que acorda? como se sente em seu corpo? como é para ela sair do banho, perder a mãe ano passado, comer um pão de manhã, passar oito horas olhando uma tela?
penso na generosidade como tentar uma reestruturação interna, o esforço da compreensão abrindo espaços, rompendo o que estava fechado, deixando que o corpo guie a reconfiguração.
queremos e não queremos fazer esse contorcionismo.
fico experimentando em que situações consigo abrir um espaço assim excepcional, deixar que a existência alheia me desconcerte, que a realidade da outra pessoa faça e desfaça a confusão, soltar o anseio de resolvê-la.
quando tento, mesmo em trocas banais, distinguir um vestígio das íntimas questões que enfrentamos. como viver bem? como amar bem? você pode ficar aqui comigo?
generosidade, terra fértil onde arrisca surgir o amor.
mas, mais uma vez, seria ingênuo pensar que a disposição generosa prossegue indefinidamente. meus limites aparecem quando encontro a brutalidade, quando percebo que há quem deboche da dor de outras pessoas, entre degeneração e desinteresse pela vida.
reconheço que aí também eu gostaria de ser mais generosa, e talvez seja onde essa disposição é mais urgente, mas tantas vezes não consigo. sinto medo e raiva, sinto uma dor tremenda, angústia que não é só minha.
fico vendo a angústia espalhada, escondida em nossas conversas, guardada na memória, nos corpos, e talvez esteja em você também.
quero pensar em como conviver com o reconhecimento desses aspectos irreconciliáveis entre nós e, inclusive, dentro de cada um.
desejo que possamos encontrar nessa dor um lembrete para não adormecer, um lembrete para o cuidado, para amar mais ferozmente sempre que pudermos.
porque todos temos algo em comum, uma sorte, outra dor: existimos agora.
o mundo externo pode parecer insano, mas é nele que estamos vivendo.
precisamos comer, dormir e amar apesar de tudo, precisamos de estratégias para viver no mundo desse jeito que está, precisamos conviver uns com os outros desse jeito que estamos.
quando reconheço que não poderei dobrar a realidade ao meu desejo, aí também está a generosidade. nesse lugar, terra fértil, poderemos talvez descansar um pouco.
poderemos cuidar de quem quer ser cuidado, aprender com quem quer aprender, descobrir onde frutificam os nossos esforços.
nesse lugar, poderemos talvez inventar modos de frear a crueldade e sonhar com as respostas que ainda não chegaram.
nesse lugar, há uma espécie de abertura que já se parece muito com amar.
imagino se é por esse caminho que cede o medo.
mas seria, por fim, ingênuo acreditar que, só porque amo, não me vacila a atenção ou que o amor assegura a generosidade.
é fácil achar que o que interpreto do outro é quem ele é de verdade, muito fácil confundir minha visão parcial com a complexidade do que existe de fato.
outro ser, ainda que próximo, sempre guardará seus cantos secretos, carregará algo de surpreendente.
imagino acolher da pessoa querida as lacunas onde não encontro sentido.
imagino suportar que a atenção seja um rasgo quando descostura a realidade, um inconveniente que desafia o esforço natural de manter o mundo intacto.
que seja chamado para ir aonde não conheço, amar o que ainda não entendo, exercitar a curiosidade como quem faz a cama para algo novo nascer.
amor, terra estrangeira onde falhará a compreensão.
cada esforço na busca por uma aliança assim reanima a promessa de um mundo compartilhado.
e é talvez tolerando o incompreensível nas pessoas amadas que me preparo para viver o absurdo da vida.
cada relação próxima, um retalho do que quero encontrar por aí. integridade e responsabilidade apesar das incoerências.
aguardaremos, afinal, que esse amor venha mostrar sua força nas crises, mas penso que ele gosta mesmo é do tédio.
nasce da atenção perseverante, entra na gente pelos sentidos, depende de presença com tempo, espaço, com o corpo inteiro.
presença nos toques, nas pausas, nos gestos da rotina.
presença para deixar-se mostrar e mexer por dentro, esticar-se como a amoreira contra o canteiro estreito, crescer.
para reconhecer encontros com outros seres vivos que fazem a terra, recriar com eles a compreensão do que é divino.
para escutar o óbvio do amor como um mantra, escutar o impossível como a surpresa que rearranja o mundo.
escutar e saber que há muito mais, há as coisas que as palavras só sabem apontar de longe, sensíveis, incomunicáveis.
coisas que talvez apenas o tempo e o olhar paciente do amor tenham chance de revelar.
assim, confio na atenção como essa lenta estratégia.
volto a olhar o que está próximo, faço um alongamento diário em direção a quem amo, treino para ir mais longe.
percebo que pode ser uma interpretação fantasiosa e não ligo tanto que seja. a realidade segue, não precisa de mim para continuar assim como está.
e amar será terra fértil onde tentarei imaginar.
ep3
este vídeo é, na verdade, uma mensagem de áudio legendada. se quiser ouvir, basta clicar para abrir no navegador.
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