outras criações de outubro
"não sei o que é, mas eu gostei”
aqui neste momento
pela porta da sacada vejo uma coruja pequena.
está quieta, pousada em um galho. no meio da cidade, no meio da tarde. imagina uma coisa assim.
ela olha em minha direção.
lembro que, no encontro com o absurdo, perco a parte de mim que achava que sabia de alguma coisa. não saber dá medo e me deixa pensando no que virá.
ainda quero acreditar que nas ausências, em tudo que se perde, floresce outro modo de ser, mesmo que eu não o entenda.
aliás, sei com certeza que ainda não entendo muita coisa que floresce por aí. convivo um pouco com esse desconhecido.
estive tateando a ideia de que a expressão "sentido da vida" talvez não signifique nada nos momentos mais agudos. parece vazia.
penso em como ela pode ser um distanciamento, uma tentativa meio sem jeito de dizer "afeto", "vínculo". talvez até de dizer "amor".
e penso que essa minha ideia também pode parecer um clichê vazio para quem não chegou a ela pelo mesmo caminho que eu, esse caminho nada especial, mas particular — de experiência, pele, ossos etc.
me imagino perplexa diante de algo tão óbvio e acho graça de mim.
muitas vezes retorno aos abismos da comunicação, suas perdas inúmeras, e bate a angústia de tomar o desencontro como regra.
aí tento lembrar de segurar as ideias com tanta e tanta delicadeza, como se com as mãos segurasse um pássaro que logo vou soltar. treino não saber, sequer desconfiar.
mas agora a tarde é fresca, e eu só quero um coração leve e ligeiro.
existir em escalas minúsculas, aprender que no detalhe pode estar uma vida toda.
vai ver é porque, depois de dizer uma palavra enorme como "futuro", é natural buscar refúgio em algo menos crucial, muito natural.
david byrne disse que uma barata pode comer a mona lisa, e também que todo dia é um milagre, todo dia é uma conta não paga, então cantemos para o jantar, amemos uns aos outros.
desta vez, não resisto à tentação de simplificar: o sentido da vida é existir ao lado de quem a gente ama.
se a bondade amorosa for uma opção, então que bom, porque isso incluiria mais e mais seres, que bonito seria. não tenho tanta certeza de que já estamos perto de algo assim, mas esse horizonte me alegra.
agora a tarde é linda e está no final. vamos levando.
escolho enxergar algo que anime o banal.
(ou escolho disfarces)
a corujinha vira a cabeça para lá e para cá.
ela e a luz passando em frestas e a planta que ainda não abriu suas folhas são as pequenas divindades do cotidiano, que nem sempre há disposição para mistério, sentido, nada disso.
quero demorar em detalhes e existir por um instante lento de possibilidades.
saber que nunca houve instante mais ou menos grandioso do que este.
quero festejar a presença de pessoas queridas,
respirar o mesmo ar, ouvir os mesmos sons, comer, beber, contar coisas sem graça e, mesmo assim, fazer todo mundo rir.
festejar poder amar e poder compor a mitologia desse microcosmo, tão irrelevante e transitória quanto todas as outras. que sorte.
desejos e convites
tentar ver o espírito de cada coisa
segurar ideias como pássaros
cantar para o jantar
uma prece para novembro
um biscoito redondo
vai direto no sorriso
mordida
daqui de onde estou vejo o céu
dez pernas e um trilhão de folhas
vivas
chove e estia
essa bolsa é linda
o barulho é geral
tem mosquito e louça
suja
de hoje para amanhã
nada será resolvido
não tenho as respostas
e há muito que omito
mas agora não parece errado
seus olhos são meias-luas
de cabeça para baixo
estão aqui
percorrem a sala
e se ninguém mais
entende o que digo
conspiram
me espiam e bastam
para continuar